Número 88 · 6-19 de Julho de 2005 · Suplemento do JL, Nº 907, Ano XXV
Ensinando a língua e a literatura portuguesa durante seis anos em universidades francesas, aprendi a conhecê-la em muitas das suas peculiaridades e segredos, sintáctica e semanticamente. Mas foi sobretudo no meu trabalho de escritor, como ficcionista e ensaísta, que pouco a pouco fui estabelecendo com ela uma cada vez maior intimidade amorosa.
Uma língua é um organismo vivo, sempre em mutação, com a sua índole, a sua psique própria, em permanente sintonia com as vicissitudes e as transformações do povo (ou dos povos) que a falam.
Para exprimir todos os matizes do pensamento e da sensibilidade das personagens que criei como romancista, em sua visão do mundo, mergulhei profundamente no âmago da língua portuguesa, na riqueza do seu léxico e da sua gramática. Fui conquistando um estilo meu, a minha língua de autor, e muito cedo descobri que a manipulação da palavra, certas formas de transgressão e inovação, certas metáforas e extensões de sentido fazem parte do ofício do romancista e do poeta. E que a analogia é uma fonte permanente de renovação da língua.
É claro que me doem certos barbarismos que hoje ouço constantemente e são fruto em boa parte dos movimentos migratórios do povo português e da subcultura da televisão, muito afectada pelo bom e sobretudo pelo mau das telenovelas brasileiras.
Tento por vezes corrigir aos meus alunos expressões como mete aí em cima da mesa, em vez de põe aí em cima da mesa, ou dá a ela por dá-lhe, que já são hoje correntes; bem como o desaparecimento da separação da preposição e do artigo no início de orações infinitivas (praticado mesmo nos jornais), como em se tiveres da alertar por se tiveres de a alertar. Há mesmo escritores com talento e nome firmado que cometem sistematicamente estes erros e outros similares.
Que quer isto dizer? Obviamente que é o povo que faz a língua e de pouco serve ir chamando a atenção da juventude (e não só) para tais desmandos linguísticos.
Ao fim e ao cabo, rendo-me a essa fatalidade. A nossa língua muda, como todas, de acordo com os processos culturais, políticos, económicos, a que estamos sujeitos. A cultura do neo-liberalismo económico é uma cultura medíocre, pragmática e niveladora por baixo. Mas a língua portuguesa, com todos os trambolhões que vai levando, continua digna de ser amada e a nossa mais autêntica prosa de ficção, a nossa poesia de hoje são bem a expressão disso, se descontarmos, é evidente, o fenómeno passageiro da inflação de produtos light, meros actos de fala "invertebrados".
Urbano Tavares Rodrigues (1923)
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